Sérgio Godinho é um personagem diferente neste processo dos chamados "cantores de Abril". Antes da revolução havia algumas caras que eu conhecia de raras aparições na televisão (Manuel Freire, Francisco Fanhais) e uma ou outra que já tinha visto nas capas dos discos que me chegavam à mão, como José Afonso ou Adriano.
Eu não conhecia a cara do Sérgio Godinho e, logo no dia 25, fui apresentado a algumas das suas canções que, se em alguns casos se inseriam no género dos hoje chamados "baladeiros", havia pelo menos duas que soavam a algo diferente: "Liberdade" e "Maré Alta" (que é a canção de Abril de hoje). Estas duas tinham algumas características que eu conhecia de outro género de música: aquilo a que na família se chamava "yé-yé" e que os Beatles e outras bandas estrangeiras também tocavam com o nome de Rock'n'roll.
Essa diferença foi confirmada nos dias seguintes ao 25 de Abril, com a chegada dos músicos exilados, que se foram juntando aos que cá estavam, organizando imediatamente várias sessões de "canto livre", que eram uns concertos espontâneos feitos onde calhava, muitas vezes sem amplificação e com meia dúzia de instrumentos. Eram quase todos pessoas muito sérias, com seus cabelos compridos e bigodes, cantando à vez para o povo, cumprindo a sua função política com responsabilidade. A partir de certa altura, começou a aparecer no meio deles um hippie, com cara de índio e toda uma maneira diferente de estar em palco. Era o que se ria, era o que se mexia, era o que acelerava o ritmo, era o Sérgio Godinho.
Por todo o chamado processo revolucionário, nas centenas de concertos e sessões de canto livre a que assisti, houve sempre três cantores cujas posturas em palco sempre marcaram a diferença: a militância feita de sarcasmo desafiante do Zeca Afonso, a intensidade poética e entrega do José Mário Branco e a dimensão teatral e a alegria em palco do Sérgio Godinho. Deste último, ainda tenho na memória um concerto na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, em 1981 ou 1982, que se transformou num fenómeno de euforia coletiva que poucas vezes me lembro de ter visto em concertos de estrelas rock internacionais.
A partir de meados dos anos 80, o rock substituiu definitivamente a canção de intervenção e os grupos de pesquisa etnográfica. o José Mário Branco desapareceu da ribalta depois duma temporada no Teatro Aberto com o espetáculo "Ser Solidário" e dedicou-se mais ao trabalho de produção e à música para teatro; Sérgio Godinho foi ao Brasil fazer um disco e, quando voltou, foi surpreendido por uma nova realidade e, com as mortes de José Afonso e Adriano, os heróis da música da revolução passaram a trabalhadores da música, lutando para conseguir editar os seus discos com menos apoio e promoção, completamente ultrapassados pela nova Música Moderna Portuguesa, perdendo capacidade de imediatismo mas ganhando tempo para cuidar da qualidade musical dos seus trabalhos futuros.
Para a história, já depois do período em que foram a principal voz do país, ficaram grandes trabalhos de Fausto, Vitorino, Janita, José Mário Branco, Sérgio Godinho. Outros, como Fanhais ou Manuel Freire, deixaram mesmo de editar. Dizem que quem sabe não desaprende. Infelizmente, alguns vão-nos deixando, perdendo a vontade ou tornando-se mais privados. Também já lá vão mais de 50 anos e toda a gente tem direito a descansar. Já a música que foram fazendo, essa nunca mais nos abandona.
#9. Sérgio Godinho - "Maré Alta"
(Sérgio Godinho)
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