Continuando nesta saga de demonstrar que há música nacional nova suficiente para passar nas rádios e aproveitando ainda as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974 e a música do Zeca Afonso, deixo-vos aqui o novo projeto do José Rebola dos Anaquim, chamado Estaca Zero, dedicado a um instrumento redescoberto, chamado guitarrinho.
Eis aqui o segundo Single, chamado "O Cavaleiro e o Anjo", uma versão do Zeca Afonso do dico "Cantares do Andarilho".
Aproveitando o andamento, deixo aqui também o primeiro single e uma breve apresentação do projeto, feita pelo próprio José Rebola.
"O guitarrinho (Coimbra)/bandurrinho foi um cordofone fabricado nas oficinas portuguesas, bastante utilizado em tunas rurais e urbanas e ranchos/tocatas populares entre o século XIX e o primeiro quartel do século XX. Na década de 1960, quando a equipa liderada por Ernesto Veiga de Oliveira fez o primeiro grande mapeamento territorial, já estaria substancialmente caído em desuso, pois a sua referenciação é pouco palpável."
Para os meus amigos que ainda desconhecem, a RTP tem uma nova aplicação chamada RTP Palco.
Estou neste momento a deliciar--me com um concerto do Mário Laginha Trio (+ Bernardo Moreira + Alexandre Frazão).
Podemos descarregar a aplicação para o telemóvel, mas também temos acesso por internet ou na televisão, através da RTP Play.
Tenho aqui a app aberta na primeira página do telemóvel e dá-me acesso, para além de todos os espetáculos que a RTP tem transmitido no âmbito das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, a vários conteúdos de música, teatro, dança, circo, enfim, tudo o que tenha a ver com palcos, entrevistas, documentários, concertos e outros espetáculos.
Tem, inclusive, ligações a conteúdos de outros palcos fora da RTP, como o S. Luís, o CCB, a Gulbenkian, a Casa da Música e sítios tão improváveis como o Liceu Camões ou o Centro das Artes Casa das Mudas.
Vejo aqui concertos de Bonga, Carminho, Salvador Sobral, Maria João, Ricardo Ribeiro e mais umas boas dezenas.
Quando protestamos contra a falta de boa música na RTP, temos geralmente razão. A boa música passa poucas vezes na RTP, quando passa é lá para os confins da madrugada e muitas vezes nem sequer chegamos a saber, porque não passamos o tempo a ver as programações da madrugada. Nesta aplicação temos todos esses bons concertos e mais uns quantos que nem sequer chegaram ao ecrã da RTP. Pois bem, o sistema é o seguinte: Se estivermos fartos dos concursos do Palmeirim, das lágrimas da Catarina Furtado, dos programas das avós e das donas de casa, das meninas na Quinta ou dos grunhos na Casa, numa noite de descanso, num dia de folga ou de teletrabalho, há todo um manancial de conteúdos musicais de qualidade, seja na RTP Play, seja, muito principalmente, nesta RTP Palco.
A RTP não me paga nada pela publicidade. estou apenas a dar conta da minha surpresa de, afinal, haver tanta música para houver na RTP e nós não sabermos.
E pronto! chegámos ao dia da revolução. E ao pomposamente chamado "Hino do MFA".
Ao princípio era uma marcha de festa que se ouvia enquanto a televisão mostrava imagens de coisas novas que estavam a acontecer no país em mudança. Quando se ouvia esta música, era porque estava a acontecer alguma coisa de importante ou excitante e corria-se para a televisão. Era o sinal da mudança, da tal aliança Povo/MFA
Com o correr do tempo, foi-se tornando a "música que está mais à mão". Sempre que falhava a transmissão da televisão, hino do MFA; se havia um comunicado, hino do MFA; se o presidente saia à rua, hino do MFA; se o Soares ia passear ao estrangeiro, hino do MFA; se havia transmissão da Assembleia, hino do MFA; separadores de publicidade, hino do MFA...
Até deitarmos o "Hino do MFA" pelos olhos e se tornar a música das cerimónias oficiais, cheias de militares condecorados, conselheiros da revolução, ministros engravatados, deputados, funcionários de partidos e respetivos séquitos, a fazer lembrar aquilo que era suposto ter acabado.
Enfim, aqui fica como piada, a testemunhar a vitória do MFA, e a interrupção desta emissão.
#17. Banda da GNR - "A Life in The Ocean Wave (Hino do M.F.A.)"
Esta não foi certamente a primeira música que conheci do José Mário Branco. Já conhecia a Ronda do Soldadinho, mas esta deve ter sido mais uma daquelas que ouvi pela primeira vez no dia 25 de Abril. Ou aí por esses dias.
O José Mário Branco é uma daquelas figuras polémicas, que nunca teve papas na língua, mas é, e aqui podem dizer o que quiserem contra que não me demovem, uma mas maiores figuras da música portuguesa, inclusive responsável por algumas das revoluções que nela foram tomando lugar, seja em termos de composição, seja em termos de produção.
Há pessoas que gostam de música e não gostam do José Mário Branco. Não faz mal. Ele também era burguês e dizia que não gostava da burguesia. Enfim, são coisas das pessoas. E depois fazia canções fantásticas como esta, a partir de um soneto escrito por um burguês autor de uma epopeia imperialista (Os Lusíadas) chamado Luís de Camões. Já percebo menos que não se goste da música do José Mário Branco por não se gostar das ideias políticas do José Mário Branco. Mas todas as opções são válidas. Se eu fosse assim, se calhar já não tinha amigos.
Pois é verdade. Os tempos mudam, as vontades também. E as tradições, e os regimes, e os governos... até as pessoas mudam de opinião. Até os sonhos mudam, calcule-se.
Há 50 anos os nossos sonhos eram diferentes. A informação que tínhamos era diferente, a educação também, e tínhamos todos menos vida. Passaram 50 anos de vida por nós. Ainda queremos todos o mesmo que queríamos no dia 25 de Abril de 1974? Eu tinha 11 anos e queria uma bicicleta. Hoje o meu maior tesouro "material" é uma guitarra.
Depois temos todos aqueles tesouros que já são tão nossos que de vez em quando esquecemos a importância que têm. As nossas pessoas, a Liberdade e a Paz. Tudo coisas frágeis. No fim, do mal ficam as mágoas; do bem, as saudades.
#16. José Mário Branco - "Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades"
Letra: Luís Vaz de Camões e José Mário Branco; Música: José Mário Branco
Durante aquelas festas, chamadas "Bacalhaus", em que um grupo de amigos, escuteiros e não só, uns mais velhos, outros crianças, alguns "em idade de ir prá guerra" (era uma idade que havia nessa altura em Portugal) se juntavam numa vivenda ali para os lados do Bairro da Encarnação para se despedirem de mais um amigo que partia para África, cantavam-se umas canções à noite, na cave, depois do jantar.
Não sei quantos "Bacalhaus" houve e desses a quantos fui. Esses nossos amigos tinham filhos e as festas de anos confundem-se na minha cabeça com estes encontros mais sérios. Para mim, era tudo festa, não dava muito pela diferença.
Sei que algumas vezes havia pessoal a tocar guitarras e todos, uns mais do que outros cantavam. Canções populares, uns faditos, umas com mais ritmo, outras mais sérias. O "Natal dos Simples" (para nós era o "Vamos Cantar as Janeiras") nunca faltava. O refrão era uma coisa do género:
Pam pa ra ra pi ri
Pam pa ra ra pi ri
Pam pam pam pam
Toda a gente cantava os versos todos certinhos e, quando chegava o refrão, punham um ar de malandreco nas caras e cantavam:
Vão parar à PIDE
Vão parar à PIDE
Vão vão vão vão
Riam-se todos e voltavam a cantar o próximo verso com a letra certa.
Eu ria-me também. Não sabia o que era a PIDE, só o viria a saber no dia 25 de Abril. Havia muitas coisas de que os adultos falavam, mas que evitavam em frente às crianças, embora durante os anos eu acabasse por ir sabendo alguns "Códigos" que lhes escapavam. O Salazar era o "Botas" ou o "Inoxidável"; o Presidente da República Américo Tomás, como ganhava sempre as eleições com batota era o "Toyota", porque nessa altura havia um anúncio a um carro da Toyota cujo slogan era "Veio para ficar, e ficou mesmo!"; o ministro dos negócios estrangeiros tinha um defeito na voz, por isso chamavam-lhe "Gúui Patguício". Mas não sabia dos amigos dos meus pais que eram presos, não percebia porque rebentavam bombas em Beirolas ou porque só os meus pais tinham a chave do correio. Só mais tarde percebi que havia gente a lutar antes do golpe de estado e que, de vez em quando, chegavam panfletos à caixa de correio que não convinha espalhar.
Para mim, a vida era calma e simples. Só tinha que ir à escola e tentar ter boas notas, ir para a rua e tentar não ser o pior jogador de futebol, para não ter de ir à baliza.
Este é o único disco completo que vai figurar nesta lista. Depois da "Menina dos olhos tristes", fica aqui agora a "Pedra Filosofal". Lado B e lado A.
As imagens que publico são do mesmo disco onde ouvi estas canções pela primeira vez. A parte da frente tem uma imagem esquisita de que não sei a autoria, mas sempre achei que os riscos eram cabelos e as bolinhas eram a cabeça a pensar, como nos livros do Patinhas.
Na contracapa vinha o poema da Pedra Filosofal que eu seguia enquanto o Manuel Freire cantava, mas que, a certa altura, apresentava um problema: é que o Manel cantava aquilo muito bem, mas o poema tinha um verso a mais, que o Manel não cantava, mas que também não tinha espaço na música, para se cantar. Vi-me pois obrigado a exercer uma espécie de censura poética desse verso, uma vez que era rejeitado até pelo próprio cantor. Vai daí, risquei-o com lápis (embora não azul).
Sei que li e reli este poema ao mesmo tempo que ouvia a música, mas as imagens que tenho na memória são principalmente de jogos, brinquedos e brincadeiras ao ar livre, misturadas com pessoas mais
crescidas a cantar o lá lá lá do fim, algumas a sorrir, outras a chorar.
Hoje, que já levo mais de 60 anos de sonhos, ainda tenho muitos por cumprir. Uns sozinho, outros nem por isso, outros com o Mundo todo, mas são só meus e não vou contá-los aqui. Então, isto não é sobre mim. É sobre as minhas canções de Abril.
Tenho ideia de que a canção de hoje era mais uma das que se cantavam nos "Bacalhaus", de que já falei antes. Fazia, certamente, parte do tal disco do Francisco Fanhais (na altura chamavam-lhe Padre Fanhais) que existia em casa do meu avô, pertença de um dos meus tios.
Eu achava extraordinária esta pessoa destemida, que não fazia as coisas só porque os outros as faziam, mas porque achava que era assim que deviam ser feitas. E devo ter pensado que era uma boa coisa para se ter na vida.
Claro que a minha vida não é uma transcrição deste poema de Sophia e em alguns aspetos até o contraria, mas a verdade é que por norma, não faço nada só por ver os outros fazer e nunca vou por um caminho por ver toda a gente a segui-lo. Sim, eu calculo, por vezes tenho medo, mas não tenho habilidade alguma para colher dividendos e certamente, se acho que tenho algo a dizer, não me calo.
Provavelmente vou continuar a ser repreendido pelos meus atos aparentemente arbitrários, pela minha ética obsessiva e compulsiva e pela minha falta de jeito para aproveitar certas oportunidades "que alguém há-de aproveitar". Porque os outros são hábeis mas eu não. Eu não!... La la la la la la, la la la la la la...
#13. Francisco Fanhais - "Porque"
(Letra: Sophia de Mello Breyner; Música: Francisco Fernandes)
Este disco do Adriano era um dos que se ouviam bastante lá em casa. Normalmente não se discutiam letras de canções na minha família, mas neste caso alguém, talvez o meu pai, não me lembro bem, fez questão de me esclarecer que o senhor que fez esta letra era um cientista e que esta era a história de uma experiência. O senhor cientista tinha resolvido testar a lágrima de uma preta, para confirmar que a sua composição era exatamente a mesma que a de uma lágrima de uma branca.
Foi a primeira vez que me lembro de ter sido confrontado com o problema do racismo numa canção. E que aprendi que cloreto de sódio era sal. Ou seja, todas as lágrimas de todas as pessoas de todas as raças não são mais do que água e sal.
Durante o resto da vida fui aprendendo que, apesar de quimicamente serem água e sal (e algumas poeiras africanas e outros tipos de poluição), as lágrimas são todas diferentes, pelo simples facto de que as pessoas também o são. Estão a ver o pão? Também é só farinha, sal e fermento. Mas há pão que sabe muito mal.
#12. Adriano correia de Oliveira - "Lágrima de Preta"
Para além do sabor "rock" de algumas das suas músicas, o Sérgio Godinho tinha muitas influências da canção de protesto que se se fazia em França e os seus primeiros discos carregavam a marca da produção do José Mário Branco. "Que Força é Essa" é uma canção pesada e intensa, mais uma daquelas que acho que conheci no dia 25 de Abril de 1974.
Não sei se, na altura, a letra desta música chegou a cumprir o seu propósito. Nesse tempo, muita gente apenas passou de uma obediência para outra obediência. O "carneirismo" é uma coisa lixada.
No meu caso, foi uma daquelas que me acompanhou nos meus anos de crescimento e que ajudou a fazer de mim um cético desobediente silencioso e é uma das razões, juntamente com outros fatores (bons conselhos, aulas de Filosofia intensas, desilusões de várias ordens e um estoicismo ético talvez exagerado) que levam os meus amigos a dizer "tu és do contra". Para mim, é assim: está mal, não faço. Se protesto ou critico é porque me pedem opiniões. Aprendi a usar esta força para outras coisas que não obedecer e, se pudesse, fazia-o sempre sem alarido. Por isso não me consigo filiar em partidos, boicoto lojas, recuso cunhas, desaproveito oportunidades, desisto de coisas e afasto-me de pessoas. E faço-o, quando posso, em silêncio porque não tenho a manha de me fazer obedecer. Há outras coisas que também faço em silêncio, que não são "do contra". Dessas ninguém fica a saber. É um dos defeitos que tenho, dizem.
A canção de hoje não entra bem na mesma categoria das outras. Não é uma canção anti-regime (ou será?); não é uma canção de luta; não é um panfleto político; não chama nomes a ninguém... é apenas uma canção de esperança.
Nunca gostei muito de fado de Coimbra. Ainda hoje não gosto. Aquela regra tradicionalista de manter as mulheres de fora (que agora começa finalmente a ser quebrada), aqueles rituais das capas, das batinas, da tosse, das vozes afetadas sempre me fizeram muita comichão. Acho tudo aquilo muito parvo e sim, quero lá saber se é tradição ou não. Se é parvo, não gosto, pronto!
Havia lá em casa um disco de fados de Coimbra, cantado por Luiz Goes, que se chamava "Canções de Amor e de Esperança" e que afinal não era bem um disco de fados, mas, vim a saber mais tarde, um disco de baladas. Em Coimbra, fados e baladas são coisas diferentes e, fiquei a saber na altura, Luiz Goes e os outros também eram coisas diferentes.
O disco, por entre as partilhas que se fizeram quando o gira-discos paterno deixou de funcionar, veio parar aqui a casa e repousa ali na prateleira, junto a obras primas de Fairport Convention, Bruce Springsteen, Neil Young ou Patti Smith, sem qualquer complexo de inferioridade, talvez até com o orgulho de ter a capa no estado em que a deixaram as centenas ou milhares de audições que proporcionou.
Há neste disco muitas canções de que eu gosto. Umas mais líricas, outras mais utópicas, algumas de desafio, mas a voz é sempre a mesma, poderosa e firme, e eu acredito no que ela diz.
E aqui diz que é preciso acreditar. Acreditar em coisas que realmente existem e que temos que preservar.
Sérgio Godinho é um personagem diferente neste processo dos chamados "cantores de Abril". Antes da revolução havia algumas caras que eu conhecia de raras aparições na televisão (Manuel Freire, Francisco Fanhais) e uma ou outra que já tinha visto nas capas dos discos que me chegavam à mão, como José Afonso ou Adriano.
Eu não conhecia a cara do Sérgio Godinho e, logo no dia 25, fui apresentado a algumas das suas canções que, se em alguns casos se inseriam no género dos hoje chamados "baladeiros", havia pelo menos duas que soavam a algo diferente: "Liberdade" e "Maré Alta" (que é a canção de Abril de hoje). Estas duas tinham algumas características que eu conhecia de outro género de música: aquilo a que na família se chamava "yé-yé" e que os Beatles e outras bandas estrangeiras também tocavam com o nome de Rock'n'roll.
Essa diferença foi confirmada nos dias seguintes ao 25 de Abril, com a chegada dos músicos exilados, que se foram juntando aos que cá estavam, organizando imediatamente várias sessões de "canto livre", que eram uns concertos espontâneos feitos onde calhava, muitas vezes sem amplificação e com meia dúzia de instrumentos. Eram quase todos pessoas muito sérias, com seus cabelos compridos e bigodes, cantando à vez para o povo, cumprindo a sua função política com responsabilidade. A partir de certa altura, começou a aparecer no meio deles um hippie, com cara de índio e toda uma maneira diferente de estar em palco. Era o que se ria, era o que se mexia, era o que acelerava o ritmo, era o Sérgio Godinho.
Por todo o chamado processo revolucionário, nas centenas de concertos e sessões de canto livre a que assisti, houve sempre três cantores cujas posturas em palco sempre marcaram a diferença: a militância feita de sarcasmo desafiante do Zeca Afonso, a intensidade poética e entrega do José Mário Branco e a dimensão teatral e a alegria em palco do Sérgio Godinho. Deste último, ainda tenho na memória um concerto na Aula Magna da Reitoria da Universidade de Lisboa, em 1981 ou 1982, que se transformou num fenómeno de euforia coletiva que poucas vezes me lembro de ter visto em concertos de estrelas rock internacionais.
A partir de meados dos anos 80, o rock substituiu definitivamente a canção de intervenção e os grupos de pesquisa etnográfica. o José Mário Branco desapareceu da ribalta depois duma temporada no Teatro Aberto com o espetáculo "Ser Solidário" e dedicou-se mais ao trabalho de produção e à música para teatro; Sérgio Godinho foi ao Brasil fazer um disco e, quando voltou, foi surpreendido por uma nova realidade e, com as mortes de José Afonso e Adriano, os heróis da música da revolução passaram a trabalhadores da música, lutando para conseguir editar os seus discos com menos apoio e promoção, completamente ultrapassados pela nova Música Moderna Portuguesa, perdendo capacidade de imediatismo mas ganhando tempo para cuidar da qualidade musical dos seus trabalhos futuros.
Para a história, já depois do período em que foram a principal voz do país, ficaram grandes trabalhos de Fausto, Vitorino, Janita, José Mário Branco, Sérgio Godinho. Outros, como Fanhais ou Manuel Freire, deixaram mesmo de editar. Dizem que quem sabe não desaprende. Infelizmente, alguns vão-nos deixando, perdendo a vontade ou tornando-se mais privados. Também já lá vão mais de 50 anos e toda a gente tem direito a descansar. Já a música que foram fazendo, essa nunca mais nos abandona.
O álbum "Cantaremos", do Adriano Correia de Oliveira, juntamente com o "Cantigas do Maio", do José Afonso e do "Canções De Amor e De Esperança" do Luís Goes eram, em casa dos meus pais, os tais discos que não se podiam ouvir muito alto. Tirando os singles com histórias para crianças e uma ou outra prenda de anos (do género A Pandilla em português ou as Canções da Linucha), só comecei a ter discos realmente meus, oferecidos por alguém ou comprados por mim, já o chamado PREC estava no fim e eu já tinha virado as minhas atenções para o rock vindo "lá de fora".
Antes do 25 de Abril, o que é o mesmo que dizer "até aos 11 anos de idade", ouvia os discos que havia lá por casa que, para além dos três que referi acima eram pouco mais do que uma ou outra coletânea do Reader's Digest com versões de êxitos dos anos 50 e 60, tocados por orquestras "Pop".
Neste álbum, o do Adriano, havia uma música que me causava uma tristeza profunda mas que eu não conseguia deixar de ouvir (creio mesmo que foi, mais tarde, das primeiras canções que aprendi a tocar na viola). Não percebia muito bem porque é que os homens da Galiza se iam embora, a Espanha nem sequer tinha guerra do Ultramar, entristecia-me que as mães ficassem sem os filhos e os filhos sem os pais, mas o que mais me fazia sofrer era mesmo aquela flauta, que se misturava com o lamento do Adriano. E o pior é que aquilo doía-me mas eu gostava e nunca conseguia ouvi-la só uma vez.
Fui construindo a minha coleção de discos, que ultrapassou a dezena de centenas, mas fui sempre voltando a esta canção, sempre que precisava daquele tratamento de choque em momentos mais complicados, mesmo que não houvesse emigração envolvida no problema. Este "shot" de flauta e voz de Adriano sempre foi para mim uma espécie de terapia primordial e indispensável.
#8. Adriano Correia de Oliveira - "Cantar de Emigração"
Não me lembro da primeira vez que ouvi esta canção. Terá sido uma das várias que conheci em 25 de Abril de 1974, junto ao rádio onde passei o dia quase todo? Não importa. Com 11 anos, eu era muito novo para perceber o que a letra queria dizer.
Tenho ideia de, muito mais tarde, num concerto do José Mário Branco, já eu aluno dos últimos anos do liceu, o significado do poema de Natália Correia me ter caído em cima de repente como um fardo e me ter feito perceber a minha condição de estudante antes e depois da revolução e um monte de razões para um monte de coisas em que as pessoas mais velhas do que eu acreditavam e de que tinham medo e que muitos continuavam, mesmo em tempos revolucionários, a tentar enfiar-nos na cabeça. Sendo eu na altura um rapazinho que fazia questão de guardar para mim o que me ia na alma, processei a coisa sozinho e jurei que comigo havia de ser diferente.
Andávamos então por finais dos anos 70, inícios dos anos 80. Há quem diga, por brincadeira, que eu já nasci com 18 anos. Tem piada, mas é mentira. Essa foi a idade em que eu comecei a fazer praticamente tudo o que devia e não devia ter feito. Foi a idade das escolhas mais difíceis. Sim, é verdade. E a vida que se seguiu foi resultado dessas escolhas. Numas coisas resultou, noutras nem por isso, será sempre uma questão de opinião. Houve coisas que perdi, mas outras que não, como esta teimosia de "não ir por aí", como dizia o outro, e houve as que me foram apanhando, uma delas esta tristeza que é ver de novo cumprir-se cada vez mais esta queixa, numa altura em que já não temos a Natália nem o Zé Mário para "avisar a malta".
Por mim, não fui "marujo de papelão" nem "cabeça presa à cintura". Posso ter dormitado no ombro de um fantasma ou outro, mas continuo a cuspir todos os pedaços de história de que me não reconheço no enredo. Não reclamo louros de ninguém mas também não assumo culpas de bandidos que aqui viveram antes de mim. A minha dimensão é a vida até eu e a minha circunstância decidirmos o contrário.
Obrigado Natália. Obrigado Zé Mário.
#7. José Mário Branco - "Queixa das Almas Jovens Censuradas"
(Letra: Natália Correia; música: José Mário Branco)
Por volta dos 10 anos, miúdos sem qualquer vestígio de educação musical, a não ser aquela que vem dos discos que conseguem ouvir, passados por adultos ou nas felizes alturas em que lhes dão (davam) o controlo da máquina, não fazem a mínima ideia do que é o arranjo de uma canção, muito menos conhecem os efeitos da ação de um produtor no resultado final de uma obra discográfica.
Descobri, sem o saber, a qualidade do trabalho de produção do José Mário Branco no disco "Cantigas do Maio" de José Afonso. Um dos que se deviam ouvir baixo e de janela fechada. O disco que tinha o "Grândola Vila Morena", que impressionava pela imponência das vozes, só ultrapassada por um outro disco que lá havia em casa do meu avô, do coral do Exército Vermelho, que eu também gostava bastante de ouvir.
No entanto, para mim, era o disco que tinha pessoas a falar pelo meio, coros estranhos, que começava as canções duas vezes porque se enganavam da primeira vez mas, principalmente, era o disco que tinha a "Mulher da Erva".
Durante todos estes anos tenho ouvido várias versões desta canção, nunca nenhuma se chegou a esta versão original. Não sei mesmo se não será esta a melhor música de sempre da música popular em Portugal. Lá está, não as conheço todas. Mas das muitas que conheço...
Entre a coleção de discos dos meus tios (para além dos óbvios Beatles) havia muito portugueses e, de entre estes, um que eu costumava ouvir muitas vezes porque gostava muito das canções dos dois lados. Era um disco do Manuel Freire que tinha no lado 1 a "Pedra Filosofal " e no lado 2 a "Menina dos olhos tristes. Mais tarde vim a descobrir uma outra versão, que tanto o Zeca Afonso como o Adriano Correia de Oliveira cantavam, mas esta continuou sempre a ser a minha "Menina dos Olhos Tristes".
É curioso como nas diferentes idades nos apercebemos das coisas. Mesmo sendo um puto de sete ou oito anos, lá tentava perceber as letras das músicas (até as dos Beatles, que me fizeram aprender inglês) e a imagem que tinha desta canção era a de uma menina pequena, uma avó e um avô a quem alguém (um adulto) perguntava porque estavam tristes. E todos estavam tristes pela mesma razão: o soldadinho (talvez de chumbo) não voltava para casa. Depois, no fim, o soldadinho lá acabou por voltar, na sua caixa, mas ninguém pareceu ficar muito contente com isso.
Eventualmente alguém me explicou o verdadeiro significado da letra e o que era na verdade a caixa de pinho e lá acabei por perceber que, de facto não havia nenhuma razão para aquelas pessoas ficarem felizes com o regresso do soldadinho (que, inexplicavelmente, continuava a ser de chumbo). Da mesma maneira, a menina continuou sempre a ser uma criança e esta versão ficou para sempre a minha "Menina dos Olhos Tristes"
Há algumas canções que, sem sabermos bem como nem porquê, nos entram no ouvido e por lá vão ficando sem que demos muito por isso. Muitas vezes passamos o dia a cantá-las, passamo-las aos nossos amigos e acabam por ficar uma espécie de mantra que por vezes nos volta à cabeça. Foi o que aconteceu na minha infância com Os Vampiros - "Eles Comem Tudo" de Zeca Afonso. Tenho ideia de que quem começou a cantilena foi um dos meus amigos, que tinha um irmão mais velho, já no liceu, que eventualmente a ouviria em casa.
Os nossos dias, em férias ou fora do horário escolar eram passados a jogar futebol (as bicicletas vieram um pouco mais tarde) ou o jogo "da época". Cada época tinha um jogo: quando começava a chover era a época de jogar ao ferro (castelo ou avião/avioneta), na altura do ciclismo jogava-se à carica com as caricas forradas com as caras dos ciclistas, que tirávamos das coleções de cromos, na primavera eram os berlindes, no verão, à noite, as escondidas com as miúdas, nos campeonatos de hóquei em patins, jogávamos hóquei uns com, outros sem (patins, claro). Estávamos sempre juntos, menos nas horas das refeições, assinaladas pelas mães com gritos da janela "Tó, anda almoçar!"
Tenho uma ideia muito clara de, em plenos anos 60, andar pela rua a cantar a frase "Eles comem tudo, eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada", sozinho ou com o pessoal que me acompanhava. Não sabia o que queria dizer, mas soava-me bem e, em certos casos, até calhava bem com a brincadeira que se estava a fazer. Nunca fui incomodado por nenhum polícia (muito menos PIDE) nem avisado por nenhum adulto. Acho que ninguém ligava grande coisa ao que dizíamos enquanto andávamos pela rua. Estávamos juntos, por isso, os pais sabiam que alguma asneira nunca seria muito grande e algum desastre nunca seria muito grave. Havia sempre um ou outro mais "ajuizado".
Acho que a primeira vez que ouvi a canção cantada por Zeca Afonso foi no próprio dia 25 de Abril. Não creio que existisse na coleção de discos dos meus tios e não me lembro se era cantada nos "Bacalhaus", de que já falei antes. Tinha uma forma estranha. o Zeca Afonso, cantava-a de maneira que parecia estar fora do acompanhamento do guitarrista Rui Pato. Ouvi-a muitas vezes ao vivo bem tocada mas raramente ouvi um amador tocá-la e cantá-la como deve ser. O Zeca também a tocava bastante mal. Aquela dissonância soava-me bem. Incomodava-me de uma maneira boa e foi talvez o início do meu gosto por fusões e algumas dissonâncias na música (enfim, dentro dos confins do meu entendimento musical, que não é lá muito educado em termos técnicos).
Os Vampiros acabou por se tornar o símbolo da desigualdade e da corrupção, dos que têm tudo e dos que não têm nada. Por vezes bem usada, outras nem por isso, mas é uma canção que nunca será esquecida em alturas de crise e de aperto. Como não será esquecido o Zeca.
Lembro-me, antes da revolução do 25 de Abril de 1974, de umas festas que aconteciam de vez em quando em casa de uns escuteiros amigos da minha família e às quais chamavam "Bacalhaus".
Havia uma tardes de brincadeira com as outras crianças, quintal acima, quintal abaixo, comia-se o tal do bacalhau e, mais tarde, já de noite, a festa deslocava-se para a cave onde havia umas sessões de canto, as vozes baixavam e, aqui e ali, via-se uma lágrima a escorrer duma face intercalada com algumas sessões de riso devido à alteração das letras de algumas canções (lembro-me do "Natal dos Simples" de Zeca Afonso, em que a frase "Pam-pa-ra-ra, pi-ri, pam-pa-ra-ra, pi-ri..." se transformava em, "Vão parar à PIDE, vão parar à PIDE..."). Sabia lá eu o que era a PIDE. Mas eles riam-se, eu ria-me.
Uma das canções que nunca faltava e de que eu gostava particularmente era aquela a que eu chamava "Vemos, ouvimos e lemos" e que mais tarde vim a descobrir que tinha o nome de "Cantata da Paz". Desta eu conhecia o disco. Era um daqueles que tinha que tocar baixinho e com a janela fechada e que eu ouvia em casa do meu avô, da coleção dos meus tios.
Mais tarde vim a descobrir que os "Bacalhaus" eram as festas de despedida dos amigos que partiam para a guerra colonial, a famosa "Guerra do Ultramar". Não sei se voltaram todos. Nem cheguei a saber quem eram os que se despediam. Essas coisas não se diziam aos "miúdos". Mas sei que muitos voltaram diferentes. Alguns nunca mais foram os mesmos. Outros, poucos, tornaram-se pessoas ainda melhores, em face do que viram enquanto lá estiveram. Um deles, pelo menos, tornou-se uma das melhores pessoas que passaram na minha vida e deu-me muito do que hoje tenho de bom.
#3. Francisco Fanhais - Cantata da Paz
(Letra: Sophia de Mello Breyner; música: Francisco Fanhais)
Quando eu era pequeno, no dia 10 de Junho havia sempre um desfile militar na televisão. Nesse tempo a televisão era cinzenta, as fardas eram cinzentas, os tanques e canhões eram cinzentos e os senhores que falavam eram talvez ainda mais cinzentos. Esses desfiles terminavam invariavelmente com a atribuição de medalhas aos "Heróis da Nação".
Nessas transmissões, sendo eu já na altura um puto interessado nas coisas da língua portuguesa, aprendi, de tantas vezes a ouvir, a frase "A título póstumo". Quis saber o que significava, logo me explicaram que eram medalhas que eram dadas à família dos soldados que não as podiam receber porque tinham morrido na Guerra do Ultramar. Percebi então porque eram quase sempre mulheres a receber essas medalhas. Medalhas cinzentas e mulheres com lágrimas cinzentas escorrendo pelas faces. E pensava: "Eu não quero ir para a guerra".
Em Junho... os que não voltavam em Maio.
#2. Adriano Correia de Oliveira, Canção com Lágrimas
(Letra: Manuel Alegre; música: Adriano Correia de Oliveira)
Com a aproximação das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril de 1974, tenho visto e ouvido por aí uma quantidade de programas e de listas que se proclamam como "As canções de Abril".
Já ouvi alguns programas e li algumas listas. Incluem muita coisa, algumas canções de antes da revolução, muita coisa editada durante o chamado "PREC" e até muita coisa dos anos em que a canção de protesto se tornou em canção popular dos cantautores, época em que, como é natural, as canções tinham mudado de tema. já não falavam da urgência da mudança de vida do povo, nem da vitória da vontade popular, muitas falavam já da deceção da revolução não consumada.
Ora, para mim, as canções de Abril são as que ajudaram a que ele se fizesse, são aquelas que se ouviam no silêncio das casas de janelas fechadas, são aquelas que inspiravam os militares nas suas reuniões secretas, são aquelas que faziam chorar tanto quem as cantava no exílio como quem as ouvia em Portugal.
As minhas canções de Abril são as canções que ouvi antes e no próprio dia da revolução, que passei sentado junto à telefonia a partir de momento em que cheguei da escola onde o meu pai me foi buscar, por ordem do MFA. Poderiam ser muitas mais, mas por razão do tempo que me resta até ao evento, são 17 e começam hoje.