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sábado, 24 de junho de 2006

Um poema "encapotado" do Verde

Ora aqui está a contribuição do Verde para esta "tertúlia musico-literária".
é sempre bom ter umas entradas mais elevadas intelectualmente. Dá estilo!

Reza então assim:

Aceitando o desafio do Belche, acerca de poemas encapotados, aqui vai o último da minha lista dos meus cinco preferidos:

O Rui Veloso e o Carlos Tê são dos melhores a juntar boas letras e boas músicas.

Alguns êxitos que todos conhecem - para se ganhar pé:

‘Roendo uma falésia na laranja’ – o gozo do T a juntar palavras que são ideias que são sentimentos, sem ter de pagar por isso. Grande exercício.

‘porto sentido’ – belo poema de amor do T à sua cidade, mistura de ternura, saudade, grandeza e tristeza. Dá a profundidade, nunca antes descortinada, ao sentimento portista de resistência ao centralismo lisboeta.

‘valsinha das medalhas’ - sarcasmo supremo sobre as distinções com que um país ‘mofado’ premeia aos seus filhos mais ‘dilectos’. Tom de conversa de cervejaria em dia de Portugal-Angola (1-0, claro!).

‘ a origem do mal’ – gozo delirante sobre a ‘moralidade’ vigente. O Adão e a Eva no palácio de cristal, com a fruta à mistura.

‘beirã’ – sinto o cheiro daquelas ervas todas quando ouço esta música - será a minha metade de beirão?

‘sei de uma camponesa’ – conto pastoral, à moda do ‘puaorto’ carago!! A gaitinha de bêços é de um engraxate da Baoavista, onde o Belâoso costumava parar.

‘saiu para a rua’ – o problema da violência doméstica tratado com luvas de pelica.
- fora de brincadeiras, há aí alguém que não se tenha detido pelas patetices do T?

‘balada da fiandeira’ – o lirismo do T a querer ser hiper-realista. É uma das que ouço às escondidas, não vão querer meter-me numa série do canal 2.

‘bairro do oriente’ – fumar umas coisas nunca fez mal a ninguém, e às vezes até dá grandes letras. E é estupenda a versão dos Clã, para o álbum comemorativo dos 25 anos.

‘o cavaleiro andante’ – ‘... sempre que a rádio diga, que a américa roubou a lua...’, tão delicioso numa canção romântica como ‘as garrafas de óleo boiando vazias nas ondas da manhã’ do rui rainadinho.....

Outros que menos gente conhece, mas que me dizem mais;

‘guardador de margens’ – o T e o RV com os pés bem assentes no chão, nas margens do rio do seu explosivo sucesso inicial. Promessa da muito boa música a suceder.

‘a ilha’ – o T de certeza também leu Fernandinho, ‘.... com os areais entendidos contra a cegueira do mar...

‘a gente não lê’–o retracto do meu avô, de sacho na mão, pela câmara implacável do T

‘afurada’ e ‘bucólica’ – o danado do hiper-realismo outra vez a arrepiar.

Etc...

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Mas em relação a estes dois há algo mais a salientar.

Um dos poucos e talvez o melhor ‘concept album’ feito em português – o famigerado ‘Auto da Pimenta’, de 1991.

Feito por encomenda para a esquecida (ao contrário da música) ‘comissão para a comemoração dos 500 anos dos descobrimentos’ (alguém sabe o que foi? Eu não vos digo porque há muito decidi esquecer). A encomenda devia ter valido 50.000 contos, mas ao que contavam as notícias da altura, não foram pagos. Devem ter sido ‘derretidos’ em BMWs, e outras mordomias das que pagamos aos chulos que nos (se) vão governando.

O T e o R aplicaram-se (estranha forma de patriotismo – sem bandeiras nas janelas, nem imprecações contra o Chocolari!!). São poucas as músicas menos boas do disco, e as letras são quase todas exemplares.

O T nunca deve ter feito tanta investigação, escrito com tanta objectividade e enquadramento, e mesmo assim - porque não é fácil escrever sobre um tema proposto, e ainda por cima tão fora da realidade presente (será?) – com tanta qualidade e quantidade.

Cada uma das músicas é por si só uma história, alicerçada em documentos e relatos da época. Os músicos são também do melhor (Mário Barreiros, Manuel Paulo, ...). As minhas escolhas são:

A descoberta dos Açores em ‘S. Miguel’

O relato da ‘política’ de povoamento de novas terras da época em ‘Lançado’

O bambolear náutico da ‘Canção de marinhar’

O abandono sublime do ‘Cruzeiro do Sul’

A tristeza pura da ‘Praia das lágrimas’

A ironia mordaz das ‘Trovas Vicentinas’

O rescrever da nau catarineta do ‘País do Gelo’

O melhor poema do T à lusofonia, ajudado pela paixão esforçada do Rui (fazendo esquecer de vez o ‘negro do rádio de pilhas’), em ‘ Nativa’

E o melhor ‘slow’ alguma vez escrito pela dupla, genial no sentimento de alienação, no escapismo assumido e aconchegado e na complexidade psicológica – todos gostaríamos de nos ‘esquecer de nós’ um pouco, embora não de vez - mas poucos teriam a coragem intelectual de o reconhecer (é preciso ser-se activo e correr junto com a manada, mesmo que somente para chegar mais depressa a lugar nenhum) –
em

‘ Logo que passe a Monção’

‘... deixem-me ficar deitado
a ouvir a chuva a cair
que ainda estou acordado
só tenho a alma a dormir...!’

com a despedida mais assassina que já foi escrita para uma balada:

‘... também eu me vou sem morrer...!


A razão da minha escolha tem a ver com o seguinte:

É relativamente fácil descrever as emoções que retractam qualquer época – a raiva à injustiça (e/ou à crueldade), o desamparo pela falta de uma sociedade justa, o desejo de qualquer forma de conciliação com a realidade que nos rodeia, ou qualquer outra coisa mais pessoal e redundante (não interessa muito - no fundo, somos todos a mesma merda!). Difícil, é reduzir numa letra para uma música de poucos minutos a trama que nos leva a ‘desistir’ do mundo ‘real’ e, finalmente a encontrar aconchego com nós próprios num mundo feito à nossa medida.

A todos os doutores, catedráticos, líderes, e ‘fazedores de opinião’ que nos entram casa dentro via TV (ou, se formos mais ‘alerta´, ‘olhos dentro’ pelo que lemos), não ouvi ou li um único que dissesse esta simples e enterrada verdade: toda a medíocridade, mesquinhez e apagonçamento de que sofre este pequeno e quase ignorável país tem causa primeira nos que nos governam, e na falta de responsabilização dos mesmos.

(... a famigerada ‘alternância democrática’. Não é irónico pensar que a democracia – figura maior das conquistas ocidentais – possa acabar no ‘alterne’...?)

O país reflecte, como nos idos de 500, os seus líderes.

Esta conversa começou com o ‘Ai Portugal’ do Jorge, e eu adicionei-lhe a ‘Mensagem’ do Fernandinho.

Eu acho, que conjuntamente com essas duas referências, este poema ‘encapotado’ define o Portugal de hoje. Um país em que, a falta de crença nos que nos deveriam fazer crer (o Zé povinho é parvo mas não é estúpido), alicerdada em anos e anos e anos (....) de ´areia para os olhos’ - adicionada ao enterro dos grandes ideais do séc XX (ideológicos, religiosos, filosóficos, éticos, ....) por falta de ‘aplicação prática’ – levam os cidadãos a entrar numa espécie de ‘salve-se quem puder’ pessoal.

‘Quero que o mundo se lixe porque não vale a pena – desde que eu possa continuar a viver a minha fábula (vida) à minha maneira.’

‘Não há remédio para sempre a mesma merda, nada do que me dizem os ‘gurus’ já faz algum sentido. E eu já não sou guerreiro de nada, a não ser de mim.’

‘...num banco de névoas calmas
quero ficar enterrado...’

‘...ópio, bendito ópio,
minhas feridas mitiguei...’

‘...numa névoa me tornei...’

(aqui, recomendo a leitura do último poema da ‘Mensagem’, de novo...)


Bom, esperemos que os habituais visitantes tenham tempo para ler esta missiva. Mas o Verde é assim. Caladinho, caladinho, nas quando começa nunca mais pára.
Tal como já tinha avisado, não tenho as músicas todas e não tenho precisamente o "Auto da Pimenta".
De qualquer maneira, se eu não arranjar a música entretanto, acho que todos se lembram do "Logo que passe a monção".

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