Agenda de concertos (carregar no evento para mais informação)

terça-feira, 19 de setembro de 2006

A usual multi-inutilidade dos multiusos (por Sérgio Castro)

Aqui há tempos, o Sérgio Castro prometeu mandar um texto com algumas considerações sobre as condições acústicas dos pavilhões multiusos... e mandou. Cá está ele!
Ainda se ponderou a hipótese de o dividir em partes mas eu achei que por inteiro a coisa percebe-se melhor. Se preferiam por partes leiam só um bocado, saiam e voltem mais tarde para ler o resto. Cá vai:


Os multiusos, como o seu nome parece querer indicar, devem ser espaços com inúmeras aptidões, grande flexibilidade e, sobretudo, multifuncionais, certo?
A ser assim, um multiusos deveria poder albergar, com a mesma facilidade e eficácia, um evento desportivo, um congresso ou qualquer tipo de manifestação artística...
Huummmm!!!

Quer dizer, no ‘multiusos’ Pavilhão do Atlântico, no Parque das Nações, para citar o exemplo que se referiu neste blog há já algum tempo, devem poder conviver (ainda que em momentos diferentes, obviamente) não só produções de espectáculos de pop/rock, música clássica, folk, jazz, ópera, musicais e teatro, mas também congressos, conferencias, um jogo de basquetbol ou de andebol e um amplíssimo etcétera... ERRADO!
Quem tal crê é incauto, quem tal garante é pouco sério. Ou ambos são simplesmente desconhecedores tanto das necessidades de cada uma das atrás referidas actividades, como das limitações impostas inexoravelmente pelas leis da Física, ou mais concisamente por uma das suas mais apaixonantes disciplinas – a Acústica.

Por alguma razão o P. do Atlântico está rodeado por alguns espaços anexos, como é o caso da Sala Tejo, destinada evidentemente a eventos muito mais minoritários e onde tive recentemente oportunidade de tocar e ouvir tocar e que, justiça lhe seja feita, soa bastante bem com um espectáculo de música amplificado através de um sistema electro-acústico. Estará a Sala Tejo igualmente capacitada para um espectáculo de música sinfónica? De forma nenhuma. Estou seguro que qualquer orquestra ‘levantaria o acampamento’ poucos minutos depois de tentar atacar qualquer Overture de uma sinfonia de Verdi.
Ou seja, a reverberação é a questão.
Por exemplo, num dos extremos das necessidades, uma sala de controlo de um estúdio (regie) deve ter uma reverberação praticamente inexistente (teoria ‘non-environmet’) ou razoavelmente baixa (demais teorias que eu não comparto), com valores que oscilam entre os 250ms e os 500ms – conforme a volumetria do espaço – para além de estar livre de reflexões especulares. Só assim podem os ouvintes, normalmente o engenheiro de gravação, o produtor ou os próprios músicos, chegar a conclusões e tomar decisões. Muitas vezes confundida com a anterior, aparece a sala que alguns tipos com sorte (e finanças) têm em sua casa para escutar música por prazer e a que algumas normas (ITU, AES etc), algo desordenadamente, atribuem valores relativamente baixos de reverberação como os citados acima. Mas neste caso estamos simplesmente a falar de uma sala de escuta, onde nada se arrisca ao permitir que o espaço introduza a sua própria cor ao programa escutado, sempre que não seja em desfavor do mesmo.
Por outro lado, uma orquestra sinfónica necessita de uma reverberação da ordem dos 1,6-1,8 segundos, onde muitas das reflexões são bem vindas (nos auditórios bem desenhados, cuidadosamente previstas e provocadas) para que os músicos percebam o verdadeiro timbre do seu instrumento, ao mesmo tempo que ouvem os demais elementos da orquestra. A não ser assim, não há maestro que valha e a orquestra nem respeita o tempo nem afina. As trompas têm que tocar uma fracção de segundo antes para compensar o caminho mais longo que percorre o som do instrumento, entre que é projectado para trás e se reflecte na parede ou na concha acústica do auditório. Sem essa ajuda não se ouvem a si mesmos nem sabem por donde vai o resto da ‘banda’.

Na realidade muitos compositores de séculos passados escreveram sinfonias com a intenção clara de que fossem executadas em determinados auditórios, cujas reverberações em frequências médias oscilavam entre 1,5 e 1,8 segundos. Wagner, por exemplo, escreveu Persifal para que fosse estreada no Festspielhaus da cidade alemã Bayreuth enquanto que Berlioz sabia claramente como ia soar o seu Requiem nos Invalides, em Paris.
Quando a música Clássica cedeu protagonismo à música Romântica de Brahms, Strauss ou Ravel assistiu-se a uma nova tendência de criar auditórios com um tempo de reverberação consideravelmente superior (1,9s – 2,1s) que proporcionavam uma muito mais rica experiência tímbrica.
Entretanto, para ópera e dado que normalmente se devem entender os textos, o tempo de reverberação baixa consideravelmente, pelo menos na gama de frequências media e grave, pelo que os 1,9 segundos antes referidos seriam sobradamente exagerados para uma perfeita compreensão do libreto. As chamadas ‘Opera Houses’ costumam apresentar tempos de reverberação que podem oscilar entre os 1,24 segundos do Scala de Milão e os 1,6 segundos da Semperoper de Dresden.
Mas que se passaria então numa destas salas se agora tentássemos uma peça de música rock, samba ou qualquer outro tipo que contenha percussão com transitórios e queda rápidos? Em primeiro lugar ficariam desvirtuados os timbres dos instrumentos e a confusão gerada pela reverberação transformaria numa experiência desagradável a execução e a audição de tal peça musical.
Pelo contrário, teria J.S. Bach escrito essas notas longas das suas fugas e concertos, se não estivesse a tirar o melhor rendimento dos mais de 3 segundos de reverberação que, tipicamente apresentam as igrejas renascentistas? O resultado de interpretar tal obra, ao ar livre, por exemplo, seria uma enorme sensação de frustração, não muito distante da que sentiria um guitarrista de Heavy Metal se no momento de subir ao palco, lhe furtassem o Turbo-Overdrive.

Assim que, para não alargar mais a ‘conversa’, poderíamos concluir que com a actual tecnologia a melhor hipótese para uma sala multiusos é prepará-la acusticamente para música amplificada, com um tempo de reverberação bastante baixo (depende do volume), mas, acima de tudo o mais livre possível das tais reflexões especulares, tão indesejáveis – já que modificam enormemente o timbre original dos instrumentos e confunde o tempo rápido – e depois equipá-la com um sistema activo de reverberação, talvez ajudado por alguns painéis movíveis na zona do palco (em caso de não existir concha acústica desmontável).
Existem alguns sistemas comercialmente disponíveis, que tem dado resultados comprovadamente positivos. Não são baratos, dado que tanto os altifalantes (pistónicos ou DMLs) como os microfones, amplificadores e processadores que se utilizam nestes sistemas, devem ter uma qualidade insuperável para não desvirtuar o sinal original e, por conseguinte, não modular incorrectamente o resultado devolvido à sala.

Em jeito de conclusão, se algum dia a sala Tejo tiver que ser utilizada para a interpretação de uma sinfonia ou uma ópera, sim que há esperança de poder adequá-la para tal fim, sem modificações arquitectónicas mas com a ajuda de sistemas de reverberação processados electronicamente. Se, por outro lado, se pretende melhorar os resultados normalmente obtidos no Pavilhão do Atlântico, ou no Multiusos do SAR de Santiago de Compostela (um inconfundível exemplo de aberração acústico-arquitectónica), a única opção razoável é um acondicionamento acústico tão complexo, que os acabamentos interiores de ambos espaços sofreriam modificações tais que os respectivos arquitectos não mais reconheceriam as suas obras.
Outras actividades têm outros requerimentos mas descrevê-los tornaria este artigo imenso e provavelment ‘intragável’. A intenção foi simplesmente a de dar algumas respostas a algumas perguntas aparecidas neste blog, há alguns meses.

Sérgio Castro

Sem comentários: