Depois de decorridas as longas e penosas quatro horas que demorou a "final" do Festival RTP da Canção 2017 tenho, como pessoa interessada por música portuguesa, que tecer algumas considerações sobre todo o processo a que alguns decidiram chamar a Renovação do Festival da Canção.
O convite aos novos compositores e a escolha dos intérpretes:
Quando comecei a ver aparecer a lista de compositores convidados pensei: sim, há aqui algo de diferente nos nomes, mas o processo é o mesmo. Compositores convidados pela produção para apresentarem músicas a concurso. Analisando mais ao pormenor, noto que, dos 16 (soube mais tarde que tinha havido convites a outros, que recusaram), apenas 11 eram realmente novos e que, desses 11, apenas sete ou oito se me afiguravam como podendo fazer algo que significasse uma verdadeira mudança no estilo musical do Festival. Ou seja, metade. Sensivelmente o número de finalistas. Arriscado.
Veio a lista de intérpretes e percebi que, em metade dos casos, a aposta continuava a ser nos cantores saídos dos concursos de talentos, no resto em estreantes, com três "repetentes". Se não há aqui nada de mau à partida, a tal "renovação de conceitos" já se esfuma um pouco.
A promoção, formato e apresentação do "novo" festival:
Aqui começou a coisa a correr mal. Tudo se passava como nos anos anteriores: a promoção do evento como um grande acontecimento (que não é), o anúncio da escolha de "uma canção para a Europa" (desta vez é que ganhamos a Eurovisão), a mobilização de tudo o que é apresentador com supostas piadas para dizer e um desfiar de "palha" sem qualquer interesse para quem se que centrar apenas no que devia importar: a música. Correu mal nas semifinais, culminou na final com uma longa sessão de quatro horas, já que havia por força que juntar o Festival com a comemoração dos 60 Anos da RTP. Uma longa e penosa transmissão com os já costumeiros "flash backs" e ainda mais "medleys" de temas de anos passados do que era costume (afinal 60 anos é um número "redondo"), onde uma banda de fantásticos músicos (o núcleo dos Cais Sodré Funk Connection) se viu reduzida a debitar uns fragmentos de algumas das canções que já ouvimos mais de uma centena de vezes. Já não há paciência para este estilo. Se era para renovar, além de não o fazerem, ainda pioraram o que estava.
As Canções:
Chegados à primeira semifinal, cedo se viu que, também neste campo, o panorama não era maravilhoso, embora se tenham notado algumas melhoras em relação a anos anteriores, mas não tantas como seria de esperar, atendendo a alguns dos nomes presentes. Das oito canções a concurso, só três representavam reais mudanças em relação ao formato usual de "música" de festival e destas, a duas a interpretação não correu nada bem. Na minha opinião, salvou-se do lote a canção "Amar pelos dois" composta por Luísa Sobral e cantada pelo seu irmão Salvador.
Na segunda semifinal, o panorama foi um pouco diferente: se havia mais canções diferentes do formato habitual, também é verdade que não eram, em geral, muito boas. Destaco aqui (porque merece) a prestação de Lena D'Água. Não entrando aqui na discussão de alguns comentários que li, tenho a dizer que, aos 60 anos, deve haver muito pouca gente neste país com a voz tão jovem e clara como Lena D'Água a tem neste momento. Tudo o resto que se possa ter dito tem muito pouco interesse. Ainda uma menção à canção "Gente Bestial" da dupla "Virgem Suta", embora não propriamente novidade no seu formato, a fazer lembrar algumas boas memórias bem dispostas de outrora como as prestações dos SARL ou Trabalhadores do Comércio, por exemplo.
Não vou entrar mais a fundo na prestação dos intérpretes por achar que alguns foram traídos pela inexperiência, outros pela "falta de canção".
Se em muitas coisas nada mudou, a grande novidade é o facto de ter ganho aquela que era talvez a melhor canção, cantada por um dos melhores intérpretes. Isto sim, é diferente do habitual e um bom sinal de mudança, apesar de parte da opinião pública continuar a apregoar "uma canção festivaleira para a Eurovisão". Esta justiça no resultado final, deve-se certamente à introdução de um júri regional, composto (na sua maioria) por músicos ou gente de alguma maneira ligada à música que, com a sua votação, impediu a vitória do mais votado pelo público (a tal canção "festivaleira" e muito, muito mal interpretada).
O Vencedor:
Se em muitas coisas nada mudou, a grande novidade é o facto de ter ganho aquela que era talvez a melhor canção, cantada por um dos melhores intérpretes. Isto sim, é diferente do habitual e um bom sinal de mudança, apesar de parte da opinião pública continuar a apregoar "uma canção festivaleira para a Eurovisão". Esta justiça no resultado final, deve-se certamente à introdução de um júri regional, composto (na sua maioria) por músicos ou gente de alguma maneira ligada à música que, com a sua votação, impediu a vitória do mais votado pelo público (a tal canção "festivaleira" e muito, muito mal interpretada).
Conclusão:
Para além do pequeno (grande) sinal de esperança de que falei acima, embora se tenha notado algum esforço no que respeita aos nomes dos compositores convidados para este Festival, a verdade é que, nalguns casos, esses compositores sofreram da falta de experiência nestas andanças e, mais importante, a RTP não esteve verdadeiramente disposta a mudar o formato de todo o resto do programa, conseguindo ainda piorar o que já era mau. Espero que tenha sido apenas um primeiro ensaio de uma verdadeira renovação a efectuar em anos próximos. A não ser assim, continuaremos a ter um evento de canções que não reflecte verdadeiramente a música que se faz no país, antes serve de apresentação de produtos eventualmente passíveis de obter uma boa classificação num festival de má música, organizado por uma Eurovisão tão decadente como a Europa que diz representar. E assim não vale a pena.
4 comentários:
"continuaremos a ter um evento de canções que não reflecte verdadeiramente a música que se faz no país, antes serve de apresentação de produtos eventualmente passíveis de obter uma boa classificação num festival de má música"????
Mas que ideia a tua!!! O festival nacional naturalmente alinhou com o que foi sendo o internacional. O internacional foi progressivamente degradado. Que sentido faria o nosso ser bom para concorrer num mau? O concurso é há uns anos a esta parte uma produção miserável, ponto.É fast food do pior para imbecis. Não te gastes a comentar isto. Gasta-te na música.
A questão é mesmo essa: de que serve alinharmos com um festival internacional que é mau, se podemos ter uma mostra do que é bom por cá?
Pode ter-te passado ao lado, mas o argumento este ano era convidar compositores da "nova música portuguesa" para fazer com que o festival se tornasse uma mostra da música que realmente se faz por cá. E aí sim, valeria a pena voltar a dar atenção ao Festival da canção. O que eu digo no fim é precisamente que, ou as coisas mudam de facto, ou então continua a não valer a pena.
Enfim, tudo é passível de ser comentado. E não me gasto assim tanto. :)
Obrigado pelo comentário. Há muito tempo que não havia disso por aqui.
Obrigada!
Logo as duas em que eu tenho andado a pensar!
A do Samuel Úria eu já tinha encaminhada, a da Luísa Sobral veio mesmo adiantar-se!
Concordo com a maioria do que disse sobre o Festival, com pequenas divergências: a voz fresca da Lena d´Água, que nunca me atraiu porque gosto mais de vozes quentes, de contraltos ou mezzo (e julgo que ela seja soprano, se a designação se aplicar à música popular) ficaria bem em bossa nova e coube como uma luva na letra que o Silva Martins lhe fez... mas não me atraiu também muito no estilo a que estou habituada da Ana Bacalhau. Mas quanto mais oiço mais gosto, lá isso é verdade.
A música da Luísa Sobral e a interpretação do irmão é realmente muito bonita, não sei nem me interessa se é "festivaleira", mas não é certamente a que mais nos representa, como não seria, se tivesse passado, a do Úria. Representam muito do que de bom se faz por cá, sim, como outras que ficaram para trás (excluindo as dos ex-concorrentes de programas de talentos, sendo que, por ironia, só se salvou o Salvador!. Para mim a que mais nos representaria seria a da Celina em que foram infelizmente notórios alguns problemas técnicos...
Mas acima de tudo estou mais optimista. Ante um começo de renovação que nada. Antes uma Europa que ao ameaçar cair nos faça repensar, que a "simples" resignação.
E se ainda nos detivemos neste Festival, há esperança!
E quanto à música do Úria, por mim não cairá no esquecimento e a minha filha de 11 anos já a cantou com uma amiga... (vamos ver se consigo a partitura vocal!)
Continuação de bom trabalho!
Obrigado, elizabete reis, pelo seu comentário.
Tirando a questão de gosto em relação à voz da Lena D'Água, até estamos bastante de acordo.
Deduzo que tenha visto as cifras. Espero que tenham ajudado.
No que respeita à partitura vocal da canção do Úria, não posso ajudar, pois não escrevo nem leio música, mas o vídeo está em https://youtu.be/qz_bv67Lw9o e a linha vocal é bastante fácil de tirar (diria mesmo "pegadiça").
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