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sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Surge, de Ser Castro: Pôr os abraços em dia.

Quando começaram a surgir os primeiros rumores acerca do projeto de disco a solo do Sérgio Castro, tentei imaginar o tipo de álbum que poderia ser e, pesando o percurso que conhecia, achei que seria um disco bastante diferente do trabalho nos Trabalhadores do Comércio. Pensei que poderia ser um álbum introspetivo, basicamente acústico com uma ou outra colaboração, ou então uma coisa mais à antiga (parece que agora se diz old school), ancorada no funk-rock dos Arte & Ofício, mas mais chegada ao universo algo esquizofrénico de um Frank Zappa. Não me saiu nem uma coisa nem outra, ou se calhar saiu-me todas juntas. Onde acertei completamente ao lado foi na língua. Pensei português, saiu inglês. Toma! É para não te pores a querer abrir a encomenda antes da chegada do carteiro.

Surge, de Sérgio Castro (no caso, Ser Castro) é notoriamente um disco solitário e introspetivo na sua conceção, mas coletivo e virado para fora no que respeita à concretização, tanto em termos de produção, de execução e até de expressão gráfica e artística (quem mais daria liberdade aos amigos para ilustrar as canções com trabalhos originais e lhes daria o destaque de um livro de exemplar qualidade gráfica em formato de disco vinil?). De facto, o livro é a primeira grande surpresa deste trabalho, diria, multidisciplinar. Cada canção tem direito a uma ilustração original, um texto explicativo em duas línguas e uma ficha técnica impressos com uma qualidade invulgar. O CD aparece na última folha, num singelo envelope plástico, como uma adenda à obra. Pegamos nele, pomo-lo a tocar (ainda têm leitores de CD? eu tenho) e rapidamente somos lembrados do que afinal se trata aqui: música! E da boa!

Em Surge, Ser Castro parece ter percebido que, com tantos anos de música em projetos coletivos e alheios, se tinha esquecido de revelar mais um pouco de si. E o que faz, neste primeiro disco a solo (sim, penso que mais se seguem), é uma rápida retrospetiva da “parte de trás”, digamos assim, dos seus 50 anos de música. O autor vai a cada uma das suas “gavetas” de vida e revela um pouco de cada uma, sempre com a ajuda dos amigos que a cada uma pertencem (ou lamentando a sua falta, mas nunca os esquecendo). O resultado é um álbum necessariamente heterogéneo em termos estilísticos, mas de grande qualidade, primorosamente tocado e cuidadosamente produzido. Todas as canções são muito diferentes umas das outras, sim, mas nunca há a sensação de se perder o fio à meada, mesmo não seguindo o alinhamento uma linha temporal, ou se calhar mesmo por não a seguir.

Surge poderia ser um álbum biográfico, mas acaba por se tornar um disco sobre momentos, amizade, saudade, agradecimento e reconhecimento. Mais do que tentar fechar capítulos, parece mais um assumir do lugar das coisas para seguir em frente. Assumem-se perdas, lembra-se quem já não está e promove-se o encontro com os amigos que se foi fazendo pela vida fora, como queremos fazer todos a certa altura das nossas vidas. No caso, nem todos os que estavam previstos conseguiram chegar a participar, o que deixa espaço em aberto para continuar a função em obras futuras. Se os discos a solo do Sérgio Castro se alimentam de amizades, pois que venham mais amigos, que nós cá os saberemos receber.

No fim, afinal o que podemos ouvir em Surge? Como se consegue enfiar cinco décadas num só álbum e de que constam esses 50 anos em termos estritamente musicais? Pois, é difícil, impossível até, inserir este disco num único género (é sempre, com o Sérgio Castro) mas, no meu caso, consigo ouvir aqui um conjunto de influências que não é certamente de lamentar, a saber: The Beatles, Moody Blues, Go Graal Blues Band (a original), Bowie, Scott Walker, Bob Seger, JJ Cale, Peter Green, Allman Brothers, Billy Joel, Zappa, Queen… e sim, Arte & Ofício e Sérgio Castro. Trabalhadores? Nem por isso, mas para isso temos aí os respetivos discos, certo?

Grandes momentos a assinalar: A voz de Daniela Costa no refrão de The Dark Hour; o solo de guitarra acústica e os coros em Slow Down; o diálogo das guitarras e o baixo “refilão” no final de Douro Blues; o piano e a guitarra acústica (que faz uma “caminha sarcástica”) em My Delightful Friend; o solo de guitarra acústica em Hard Blow; Fernando Nascimento em The Same Old Song. E mais uns quantos, mas a prosa já vai longa e já escrevi para aí o triplo do que planeei, que nisto dos blogues, a coisa tem que se ler rápido.

E é verdade. Também eu deixei passar uns abraços pelo caminho. Todos deixamos, penso eu!

Obrigado, Sérgio.



1 comentário:

Unknown disse...

Boa crítica a um álbum soberbo de um cantautor e músico que não deixa os trabalhos onde participou,quer musicalmente quer graficamente, por mãos alheias. Este é mais uma agradável surpresa a todos os níveis.